quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Roteiro para Jorge Amado e Capitães da Areia

Jorge Amado (Itabuna – BA – 1912/ Salvador – BA – 2001)
Dados biográficos:
- Nasce numa fazenda de cacau em Itabuna;
- Muda-se para Ilhéus com a família aos dois anos;
- Mau aluno, cedo prefere vida de aventuras;
- Interno em colégio em Salvador, foge aos 13 anos (em 1925) e percorre sozinho o sertão baiano rumo à casa do avô em Sergipe, onde permanece dois meses;
- Cedo entra para o jornalismo (15 anos);
- 1931 – Publica primeiro romance (O país do carnaval) – tem 19 anos. Começa o curso de Direito no Rio de Janeiro;
- 1933 – Casa-se pela primeira vez, com Matilde (veja dedicatória de Capitães da areia). Publica Cacau. Este é também o ano de publicação de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre;
- Já é membro atuante do Partido Comunista Brasileiro;
- Em 1934 publica Suor. Forma-se em Direito em 1935 (sem nunca frequentar o curso);
- 1935, publica Jubiabá, 1936, publica Mar morto e é preso por acusação de participação na Intentona Comunista
- 1937, publica Capitães da areia. Ele tem 25 anos;
- Preso novamente a seguir da instauração do Estado Novo;
- Seus livros são queimados em praça pública em 1937;
Jorge fala sobre a queima de livros em entrevista concedida ao professor Álvaro Cardoso Gomes (USP):
“Em São Paulo, na Bahia, estava sendo queimado em praça pública. Em Salvador, tem até ata da queima...1.694 exemplares de meus romances queimados em praça pública por ordem do comando da 6a. Região Militar” (Gomes, 1988, p. 35)


Uma boa “chave” para entrar na obra de Jorge é atentarmos para o que diz Ana Maria Machado,no excelente Romântico, sedutor e anarquista. Como e por que ler Jorge amado hoje.(Rio de Janeiro: Editora Objetiva)
Sobre o heroi ou heroína em Jorge Amado:
“O herói de Jorge Amado é um homem ou mulher que diz não, um rebelde que não admite os mecanismos repressores da sociedade.”

Sobre Jorge Amado escrevendo na juventude...e depois:
“Na obra daquele menino que antes dos vinte anos começava a publicar seus romances, havia desde o início um ouvido atento e um olhar agudo, ao lado da solidariedade, sensível à dor do outro. Esses personagens que ele nos traz falam e se comportam igualzinho a nossa gente comum, como ninguém ainda tinha falado e se comportado em nossos romances. Provavelmente, tal feito ajuda a explicar a profunda empatia que ele logo estabelece com seu público, a cumplicidade que se tece de imediato entre autor, personagem e leitor. É uma façanha pioneira da linguagem, como poucos tinham conseguido antes. Com essa intensidade, talvez apenas Lobato.”

Ana Maria aponta fatores exógenos (fora da obra) e que impulsionaram o sucesso do autor:

Num primeiro momento:
- Propaganda do Partido Comunista no começo da carreira (“reforço nacional e internacional da [...] máquina de promoção do partido comunista para traduzi-los e elogiá-los”);
- Pelo exílio (a partir de 1948): proximidade com intelectuais europeus de grande representatividade – Pablo Picasso, Paul Éluard, Pablo Neruda, etc.
Mais tarde:
- “Apogeu midiático da Baianidade” – venda de direitos para TV e cinema;
- Celebridade – “alguém que vai ficando mais famoso pelo simples fato de já ser famoso.

Porém, só isso não seria determinante para todos os anos de vendagem de livros – num país onde predominava o analfabetismo (Ana Maria nos lembra que Amado nasceu em 1912 e que começa a publicar romances aos 19 anos, em 1931!)

Jorge Amado atingiu e manteve popularidade como escritor numa sociedade predominantemente analfabeta, que ele ajudou a formar como leitora. E nisto, Jorge esteve em boa companhia: Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Vinícius de Moraes eram na época bons escritores formando público-leitor num período pré-empresarial.

Há muito preconceito em torno de Jorge Amado – porque foi comunista, porque deixou de ser comunista, porque fez sucesso, porque, a partir da década de 1980 se aproximou de políticos de direita, porque vendeu direitos de adaptação para cinema e televisão, porque ganhava dinheiro...Ufa!

Nesses casos, o melhor é LER A OBRA. Vamos então a Capitães da areia?

Susana

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Romance social de 30

Olá a todos,
Então, no prosseguimento da nossa visita ao acervo pedido nos exames vestibulares chega a hora de falarmos sobre o romance de 1930, dentro do "realismo social".
Antes, porém, vejamos o que acontecia no Brasil e no mundo no início da década de 1930.

- Crise Mundial (crack da Bolsa de NY em 1929, queda dos preços do café);

- Produção agrícola sem mercado, ruína de fazendeiros e desemprego nas cidades;

- Brasil investe na industrialização.

Especificamente no Brasil, entre 1934 e 1937:

- 1934 – reivindicações operárias, greves, campanhas anti-fascistas;

- 1935 – Lei de Segurança Nacional – repressão movimentos sociais;

- "Fantasma do comunismo internacional"

- Aumenta autoritarismo – órgãos de repressão (recomendamos uma visita à Estaçao Pinacoteca, em São Paulo).

- 10 de novembro de 1937 – Início do Estado Novo por Golpe de Estado;

- Dissolução do Congresso Nacional;

- Polarização entre Fascismo e Comunismo.


É neste panorama que surge o que ficaria conhecido como "Realismo social de 1930":

- Literatura engajada;

- Jorge Amado, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos;

- Em geral: “Brasil rural, vivendo situações típicas de um país atrasado”, segundo o professor Álvaro Cardoso Gomes (USP).

Com uma grande quantidade de romances, o realismo social teve como temas centrais:
- Relações arcaicas de trabalho;

- A seca e o drama dos retirantes;

- O drama dos operários e o mundo as greves;

- A decadência das estruturas feudais;

- Os desmandos dos poderosos.

Neste enquadramento estão "Capitães da areia", de Jorge Amado (1937) e "Vidas secas", de Graciliano Ramos (1938).

Susana

domingo, 5 de setembro de 2010

Dom Casmurro - lembretes...

Olá a todos,

Lembro, então, as três principais linhas de leitura desde a publicação do livro:

No passado até década de 1960:
a história de uma dupla traição narrada pelo marido traído.

A partir da década de 1960:
romance de uma suspeita.

Leitura contemporânea (Roberto Schwarz; Luiz Roncari):
Bento Santiago não é um narrador confiável e seu romance é um libelo acusatório.

Em frente... sem mais reticências!
Volto à "cena" em que Bentinho "desesperado" janta e vai ao teatro ver..."Otelo" (vamos a trecho e comentário, ok?):

"Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço —um simples lenço!— e aqui dou matéria à meditação dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não me pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se. Hoje são precisos os próprios lençóis; alguma vez nem lençóis há e valem só as camisas.
Tais eram as idéias que me iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro rolava convulso, e Iago destilava a sua calúnia.
Nos intervalos não me levantava da cadeira - não queria expor-me a encontrar algum conhecido. As senhoras ficavam quase todas nos camarotes, enquanto os homens iam fumar. Então eu perguntava a mim mesmo se alguma daquelas não teria amado alguém que jazesse agora no cemitério, e vinham outras incoerências, até que o pano subia
e continuava a peça. O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público.
— E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo;— que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro?Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna extinção..."

Bom, conforme vimos conversando...veja bem, não é?
a) pouco usual um homem culto de final do Século XIX não ter lido nem visto representada em Teatro o "Otelo".
b) ele está péssimo, mas janta e vai ao teatro? precisava dar a receita... tudo bem, já entendi, tem gente assim, mesmo. Mas, que tipo mesmo de pessoa?
c)o último ato "mostra" a ele que Capitu deve morrer - uma pessoa com discernimento e sensatez, ademais um homem de cultura, sabe que há a necessidade de distanciamento entre o que você vê representado e a sua vida. Não é como esses desavisados que, ainda hoje, levados pela emoção, andam aí a emboscar malvados de telenovela distribuindo bordoadas (nem preciso falar nisso, está todos o dias na internet - ator ou atriz que faz papel de malvado(a) a levar desde guarda-chuvadas até tapas).
d)o público em sua narrativa - elaborada muitos anos depois do ocorrido e que portanto deveria usufruir da serenidade da maturidade - aplaude não o trabalho dos atores mas a cena em si, a morte (injusta) imposta a Desdêmona por Otelo!

E então, dá panos para as mangas, hem?

Final do livro:

“O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente.” (Dom Casmurro).

E alguns questionamentos:

1) Todo o mundo que já sofreu decepções com pessoas que pensava conhecer e com as quais conviveu longo tempo pode ter esse tipo de reflexão;

2) E D. Casmurro, será que aquele cara que - parece que concordamos - é no mínimo problemático, já estava lá, dentro do Bentinho inocentinho que pensava em pedir ajuda a D. Pedro II para não ir ao seminário? Ou aquele anjinho (ladeado por uma menina bem mais prática e "esperta") é uma criação do rancoroso D. Casmurro?

Por fim, vamos ao início do romance - D. Casmurro nos diz lá no início da narrativa para não procurar "casmurro" em dicionário - pois o seu apelido é dado no sentido que conferiu o "vulgo" de indivíduo "calado e metido consigo".
Então vamos fazer o que disse para não fazer, certo?
Casmurro - dicionário Houaiss:

n adjetivo e substantivo masculino
1 diz-se de ou indivíduo teimoso, obstinado, cabeçudo
2 diz-se de ou indivíduo fechado em si mesmo; ensimesmado, sorumbático

Pois bem, a segunda acepção é mesmo a que ele diz, mas e a primeira? Teimoso, obstinado, cabeçudo?
O que se pode fazer com essa informação? Ler...Hummm!
Aguardo postagens!
Abraço
Susana

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

"Dom Casmurro" - links

Olá pessoal!
Vamos ver os vídeos relacionados a "Dom Casmurro".
Abraço
Susana


Tony Ramos dizendo o começo de Dom Casmurro
http://www.youtube.com/watch?v=Qsttmsrlz6c

Capitu, personagem da novela Laços de Família

http://www.youtube.com/watch?v=_ZC58weCFso&feature=related

Interpretação da Canção Capitu, de Luiz Tatit, por Zélia Duncan
http://www.youtube.com/watch?v=NAeJv8LAX28&feature=PlayList&p=3B3428415EB6A4BE&playnext=1&playnext_from=PL&index=101

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Auto da Barca do Inferno...

Olá gente,
Vamos nos lembrar o que o professor Ivan Teixeira fala sobre a grandeza do teatro vicentino?
"...consiste em sua atualidade, decorrente sobretudo do domínio sobre a poesia. Sua maior conquista é a linguagem poética[...]o talento de Gil Vicente era essencialmente poético. Seu texto produz a impressão de que não poderia ser feito de outra forma."

In Prefácio à Edição de Auto da Barca do Inferno da Ateliê Editorial

Gil Vicente começa a produzir em 1502 - ano da apresentação de Monólogo do Vaqueiro

Sobre Gil Vicente e sua época, vamos ver o que diz o professor Benjamin Abdala Júnior da USP em seu prefácio `a Edição do Auto pela SENAC:
“Importava-se de tudo. Era mais fácil adquirir bens como ouro e as especiarias provenientes das Navegações, ficando o trabalho mais pesado para os escravos capturados na África e na Ásia. Nessa situação, a população rural deixava o campo e corria para Lisboa, os artífices afastavam-se das manufaturas, os fidalgos acotovelavam-se em torno do palácio real. Desorganizava-se assim a produção. Todos, inclusive o clero, procuravam usufruir desse vertiginoso afluxo de riquezas.”

Lembremos sobre "auto":

Peça em um ato; composição dramática de caráter religioso, moral ou burlesco (preferencialmente devoto e com personagens alegóricas) – segundo o professor Segismundo Spina.

Gil Vicente, nascido talvez em Guimarães por volta de 1465 e desaparecido talvez em Lisboa por volta de 1536 foi um homem de seu tempo, que é o da transição entre dois séculos, dois modos de pensar o mundo (medieval e renascentista).

As personagens vicentinas são alegóricas e representam:uma classe;uma categoria ou
um tipo humano.

Os temas em "Auto da barca do inferno":

Crítica à exploração do homem pelo homem;

Crítica ao clero decadente;

Crítica ao mau uso e corrupção da justiça;

Exaltação aos bons (incluindo os pobres de espírito).



Finalmente, vamos falar sobre a linguagem em Mestre Gil?

Realista, reproduzindo o falar das personagens;

Rica, de acordo à classe social e ocupação daquele que fala;

Falas curtas, rimadas;

Uso de redondilhas (tradição popular ibérica).


Na próxima postagem,vamos começar a pensar em Machado e Eça, ok?
Abraço da
Susana

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

"O cortiço" - Aluísio Azevedo

Olá gente,

Posto "coisas" sobre "O cortiço"

Primeiro as epígrafes, coisa para se pensar:

“Periculum dicendi non recuso”
(Cícero)

“La Vérité, toute la vérite, rien que la vérité”
(Droit Criminel)

“Os meus honrados colegas do jornalismo, e todos esses grandes publicistas que fatigam o céu e a terra para provar que esta em que estamos é a verdadeira época de transição, esses nos dirão se a Providência andaria bem ou mal se hoje suscitasse um novo Timon da verdadeira raça das fúrias, com que as pontas viperinas do azorrague vingador, lacerasse sem piedade os crimes e os vícios que a desonram.”
(João Francisco Lisboa, Jornal de Timon, Prospecto – Obras completas,1º.volume, página 12)

“Un Oyseau qui se nomme cigale estoit en un figuier, et François tendit sa main et appella celluy oyseau, et tantost il obeyt et vint sur sa main. Et il lui deist: Chante, ma seur, et loue nostre Seigneur. Et adoncques chanta incontinent, et ne sen alla devant quelle eust congé.” — Jacques de Voragine, La Légende Dorée.


Tradução da primeira epígrafe: “Não recuso discursar sobre coisas perigosas” (Cícero)
(o atenção para o verbo “discursar”, que é tomado em relação à retórica, ou seja, discursar em púlpito, em tribuna)

Tradução da segunda epígrafe: />“A Verdade, toda a verdade, nada além da verdade” (Direito Criminal)

Contexto e Tradução da última epígrafe – o trecho corresponde a uma das vidas de santos – São Francisco de Assis no caso - narrada na Legenda áurea, por Jacques de Voragine, tradução francesa do nome do italiano Jacopo de Varazze, nascido em 1226 em Varazze, localizade próxima de Gênova. A tradução que segue é a do brasileiro Hilário Franco Júnior, responsável pela edição brasileira da obra. São Paulo: Companhia das Letras,2003)

[havia ao lado de sua cela] “uma figueira na qual uma cigarra cantava com freqüência. O homem de Deus estendeu a mão e chamou-a, dizendo: “Minha irmã cigarra, venha aqui”. Ela obedeceu imediatamente e subiu na mão de Francisco, que lhe disse: “Cante, minha irmã cigarra, e louve seu Senhor”.Ela se pôs a cantar no mesmo instante e retirou-se apenas depois de ter sido dispensada.”

Agora links legais do youtube para vocês navegarem um pouco:

"O Cortiço"
Vídeo 1:
http://www.youtube.com/watch?v=dSRMm4Ln6Hw

Cortiços, vida e arquitetura
http://www.youtube.com/watch?v=TV0D9Hr-0Pg

Fotonovela a partir do filme de 1978
http://www.youtube.com/watch?v=-7mPQ41ZdA0

E mais um bônus - a cena da sedução de Pombinha, no filme de 1978
http://www.youtube.com/watch?v=m140aYQV6GQ


Deixo também duas citações do ensaio "De cortiço a cortiço" de Antonio Candido (In "O discurso e a cidade"):

“[...] o que há n´O cortiço são formas primitivas de amealhamento, a partir de muito pouco ou quase nada, exigindo uma espécie de rigoroso ascetismo inicial e a aceitação de modalidades diretas e brutais de exploração, incluindo o furto como forma de ganho e a transformação da mulher escrava em companheira-máquina”


“A perspectiva naturalista ajuda a compreender o mecanismo d´O cortiço, porque o mecanismo do cortiço nele descrito é regido por um determinismo estrito, que mostra a natureza (meio) condicionando o grupo (raça) e ambos definindo as relações humanas na habitação coletiva”

Até a próxima postagem!
Susana

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

"Memórias de um sargento de milícias"

Olá gente,
Eis-me pensando sobre "Memórias de um sargento de milícias"...


Memórias de um sargento de milícias saiu em formato de folhetim no Correio Mercantil, jornal de oposição (portanto, de linha liberal, enquanto o poder estava com os conservadores), aos domingos, quando o periódico costumava "se transformar" em "A pacotilha", um jornal divertido, onde a sátira predominava.
Vale lembrar um excerto da seção de reclamações(escritas pelos próprios jornalistas,ao que tudo indica) do mesmo período da publicação de Memórias ali:

“Senhor Antônio, vá naquela freguesia desta cidade, cujos paroquianos são os maiores proprietários[...] e diga ao vigário dela que não é bonito, quando vai à tarde para Niterói, estar com conversa amorosa na ponte das barcas com a crioula gorda que vende pão-de-ló[...] e que portanto se abstenha disso, que não é próprio de um Sr. Vigário, e já de cabeça branca.” (1851)


A versão que temos (formato-livro) não é exatamente igual àquela publicada em "A pacotilha" - marcadamente as menções a D. João VI (em que aparece como "pateta", na linha mostrada pelo filme "Carlota Joaquina, princesa do Brasil", de Carla Camurati), foram suprimidas...

O ensaio considerado fundamental para a interpretação crítica do livro é "Dialética da Malandragem", de Antonio Candido (in O discurso e a cidade).
Ali, entre outras discussões, Candido afasta de Leonardinho o rótulo de "pícaro" (adj. Patife, velhaco, mau, astuto; Tipo literário).
Veremos na aula sobre Gil Vicente um pícaro real, o João Grilo, de Auto da Compadecida) - texto de inspiração vicentina confesso.
Sobre a situação de Leonardinho, vejamos o que diz Candido:

“lhe falta um traço básico do pícaro: o choque áspero com a realidade que leva à mentira, à dissimulação, ao roubo, e constitui a maior desculpa das “picardias”.
Na origem o pícaro é ingênuo; a brutalidade da vida é que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como defesa; mas Leonardo, bem abrigado pelo Padrinho, nasce malandro feito, como se se tratasse de uma qualidade essencial,
não um atributo adquirido por força das circunstâncias.”

Parece mesmo a descrição do João Grilo, não? Este sim, pícaro puro. Leonardinho é, então o "Malandro". Ainda Candido:

“Leonardo não é um pícaro[...] mas o primeiro grande malandro que entra
na novelística brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica[...] Malandro que seria elevado à categoria de símbolo por Mário de Andrade em Macunaíma”

Malandro século XIX, vamos ao Houaiss?
Acepção 1:
que ou aquele que não trabalha, que emprega recursos engenhosos para sobreviver; vadio que ou aquele que leva a vida em diversões, prazeres
que ou aquele que tem preguiça; mandrião, indolente que ou aquele que furta, que vive fora da lei; ladrão, gatuno, marginal.
Regionalismo: Brasil. que ou aquele que simboliza certo personagem-tipo carioca das classes sociais menos favorecidas, no sXIX ligado à capoeiragem e à
valentice
, e no sXX dado ger. como um boêmio sensual, de reconhecida lábia e modo peculiar de se vestir, mover, falar etc.

Muito bem... e malandro do século XX vimos um (o da "Ópera do Malandro") e veremos outros durante o curso, notadamente dois outros, presentes em Capitães da areia, de Jorge Amado.
Mas isso é assunto para mais tarde, não?

Antes de fechar a postagem, no entanto, gostaria de indicar um texto bem recente e muito bom para a compreensão do livro, o ensaio do professor Mamede Moustafa Jarouche, que está na edição da Ateliê Editorial e que se chama: "Galhofa sem Melancolia: as Memórias num mundo de Luzias e Saquaremas".
Vale a pena conhecer!
Susana

sábado, 7 de agosto de 2010

Ainda "Iracema"

Olá,
Domingo de sol e eu me lembrando da gélida terça-feira, onde estive pensando sobre Iracema.
Gostaria de dividir algumas citações que andei pinçando:

O trabalho de José de Alencar por ele mesmo:

“A palavra tem uma arte e uma ciência: como ciência, ela exprime o pensamento com toda a sua fidelidade e singeleza; como arte, reveste a ideia de todos os relevos, de todas as graças e de todas as formas necessárias para fascinar o espírito”.

Segundo M. Cavalcânti Proença:


“O que o distingue dos contemporâneos é a consciência, despertada cedo, de que o artista se faz é pelo domínio de seu instrumento de trabalho."

Susana

terça-feira, 3 de agosto de 2010

"Iracema"

Olá pessoal,
É um prazer voltar a falar sobre Iracema (ando estudando literatura moçambicana e reler Iracema tem sido importante para mim!

Comecemos pelos "ecos" alencarianos em marchinhas de Carnaval.
Achei no youtube a Marchinha "Touradas em Madri", do João de Barro (Braguinha) de que falarei hoje à tarde.
71 anos após a publicação de "O Guarani" eis Peri e Ceci redivivos em 1938, na letra que fala da Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
Quem quiser conferir - a gravação é de 1957 e é preciosa - Trio Irakitan com a participação de Grande Otelo (em referências ao Bumba-meu-boi) - que mistura, hem?
O endereço:
http://www.youtube.com/watch?v=PFE2UNSu5Hs
Para quem preferir ouvir a genial Carmen Miranda interpretando a mesma Marchinha, em época mais próxima à da composição, vale ir até
http://www.youtube.com/watch?v=8X__-qUuiig
Susana

quinta-feira, 15 de julho de 2010

"Noturno amarelo"

Mais um dia na companhia da obra de Lygia Fagundes Telles. No conto "Noturno amarelo" Laurinha revisita seu passado. Como Lygia é mestra nas curvas da realidade que resvalam para os territórios do sonho e do mistério.
Vale a viagem...
Susana

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Na companhia de Lygia

Relendo contos de Lygia Fagundes Telles. Recebi da Companhia das Letras há dois meses os livros de contos "Antes do baile verde", "Seminário dos ratos", "A noite escura e mais eu" e, numa visita feita à editora na semana passada, o belo "A estrutura da bolha de sabão". Ando, portanto, na companhia de Lygia, lendo cada livro e tentando compreendê-lo na sua particularidade. Cada conjunto volta a me surpreender, me intrigar, me assustar. Acostumada como leitora e professora a ler os contos em muitas coletâneas diversas, agora retomo os contos dentro de outro conjunto. Penso e repenso, escrevo, tomo notas.
Meus agradecimentos à Companhia das Letras - Mariana, Joana - pela oportunidade de (re)leitura.
Susana

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Casa das Rosas - 7 de julho de 2010

Obrigada a todos os que estiveram conosco na Casa das Rosas ontem, dia 7.
Foi um real prazer partilhar com vocês nossa alegria em receber a Professora Vania Chaves de Lisboa, as pesquisadoras da USP, Clara Carvalho Alves e Debora Leite David. Nossa tão querida Maria José Silveira, infelizmente ausente por motivo de saúde, iluminou de maneira inequívoca nossa tarde com "A História em minha obra", texto escrito especialmente para o encontro e que foi lido por mim. Estamos trabalhando pela publicação dos textos integrais.
Um abraço ainda emocionado,
Susana Ventura

terça-feira, 29 de junho de 2010

"Conversas literárias: Literatura e História na produção contemporânea de Língua Portuguesa"

Núcleo de Estudos Ibéricos da UNIFESP-Guarulhos e Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das Universidades de Lisboa CLEPUL, convidam para:
"Conversas literárias: Literatura e História na produção contemporânea de Língua Portuguesa"

Data: 7 de julho de 2010
Organização: Susana Ramos Ventura e Débora Leite David
Horário: das 15 às 18 horas
Local: Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura
Av. Paulista, 37 (Metrô Brigadeiro)
Bela Vista - São Paulo - Brasil
Telefones: (11) 3285.6986 / 3288.9447
(Não é preciso realizar inscrição previamente, atividade gratuita com certificado)

Programa:

15:00 h– Abertura do evento
15:15 h - Conferência
Professora Vania Pinheiro Chaves (Universidade de Lisboa/CLEPUL) - “Os homens dos pés redondos, de Antonio Torres como alegoria do Portugal Salazarista”. Apresentação: Débora Leite David.

16:40 h – Mesa Redonda
"Literatura e História"
Carla Carvalho Alves (USP) – “Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, de Mário de Carvalho: um romance histórico contemporâneo”
Débora Leite David (USP) -“A costa dos murmúrios, de Lidia Jorge: a Guerra Colonial em perspectiva.”
Susana Ramos Ventura (UNIFESP/FAPESP) - “Ficções de ´gestos históricos´ em três autores contemporâneos: José Saramago, João Paulo Borges Coelho e Maria José Silveira”.


17:30 h – Com a palavra a escritora
“A História em minha obra”, com a escritora Maria José Silveira.

18:00 h – Encerramento


Apoio: Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura

domingo, 20 de junho de 2010

Encontro na UCSC em 18 de junho e texto de Saramago

O segundo encontro na UCSC no dia 18 foi marcado pelo desaparecimento de José Saramago.
Conforme prometi, então, reproduzo o discurso de Saramago que comentamos e que foi pronunciado no dia 10 de dezembro de 1998, no Banquete que fez parte das solenidades de recepção do Prêmio Nobel de Literatura.
Um abraço
Susana

"Majestades, Alteza Real, Senhoras e Senhores,


Cumpriram-se hoje exactamente cinquenta anos sobre a assinatura da Declaração Universal de Direitos Humanos. Não têm faltado, felizmente, comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, com que rapidez a aten-ção se fatiga quando as circunstâncias lhe impõem que se aplique ao exa-me de questões sérias, não é arriscado prever que o interesse público por esta comece a diminuir a partir de amanhã. Claro que nada tenho contra actos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desa-conselha, permita-se-me que pronuncie aqui umas quantas palavras mais.

Como declaração de princípios que é, a Declaração Universal de Direitos Humanos não cria obrigações legais aos Estados, salvo se as respectivas Constituições estabelecem que os direitos fundamentais e as liberdades nelas reconhecidos serão interpretados de acordo com a Declaração. Todos sabemos, porém, que esse reconhecimento formal pode acabar por ser desvirtuado ou mesmo denegado na acção política, na gestão econômica e na realidade social. A Declaração Universal é geralmente considerada pelos poderes econômicos e pelos poderes políticos, mesmo quando presumem de democráticos, como um documento cuja importância não vai muito além do grau de boa consciência que lhes proporcione.

Nestes cinquenta anos não parece que os Governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força da lei, estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigual-dades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esqui-zofrénica humanidade que é capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante.

Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os Governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem. Ou porque não lho permitam os que efectivamente governam, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a uma casca sem conteúdo o que ainda restava de ideal de democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Foi-nos proposta uma Declaração Universal de Direi-tos Humanos, e com isso julgámos ter tudo, sem repararmos que nenhuns direitos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspon-dem, o primeiro dos quais será exigir que esses direitos sejam não só reco-nhecidos, mas também respeitados e satisfeitos. Não é de esperar que os Governos façam nos próximos cinquenta anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicar-mos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deve-res. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor.

Não estão esquecidos os agradecimentos. Em Frankfurt, onde estava no dia 8 de Outubro, as primeiras palavras que disse foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prémio Nobel de Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos volto a agradecer. E agora quero também agradecer aos escritores portugueses e de língua portuguesa, aos do passado e aos e aos de agora : é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem hajam, portanto. "
(José Saramago, discurso no Banquete de recepção do Prêmio Nobel de 1998).

quinta-feira, 17 de junho de 2010

SESC São Caetano do Sul e USCS – Fernando Pessoa e José Saramago. 16 e 18 de junho de 2010.

Nosso encontro de ontem no Campus 2 da USCS foi muito produtivo. Fizemos um percurso pelas obras de Fernando Pessoa e José Saramago, sob o ponto de vista da invisibilidade social e linguística. Aí está nosso percurso de textos para quem desejar fazer ou refazer a “viagem”.
Abraço
Susana

“Mar português” – Mensagem – Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

“Ela canta, pobre ceifeira” – Fernando Pessoa


Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!


“Poema em Linha Recta” – Álvaro de Campos


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


“Poema XXXII” – O guardador de rebanhos – Alberto Caeiro


Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.

(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu – não sofrerão.

Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)

Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.

(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa – existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar nisso.

E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?

Memorial do Convento – Trecho – José Saramago

Vão outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos os Baltasares, e haverá Joões, Álvaros, Antónios e Joaquins, talvez Bartolomeus, mas nenhum o tal, e Pedros, e Vicentes, e Bentos, Bernardos e Caetanos, tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino; Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados, porventura nem todos estes nomes serão os próprios do tempo e do lugar, menos ainda da gente, mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos, e alguns destes estarão no futuro de alguns daqueles, à espera de quem vier a ter o nome e a profissão. De quantos pertencem ao alfabeto da amostra e vão a Pêro Pinheiro [...]

“Fala do Velho do Restelo ao Astronauta” – José Saramago


Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti nem eu sei que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal soletramos, de olhos tensos,
Maravilhas de espaço e de vertigem:
Salgados oceanos que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
(E as bombas de napalme são brinquedos),
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome.

SESC São Caetano do Sul e USCS – Fernando Pessoa e José Saramago. 16 e 18 de junho de 2010.

Nosso encontro de ontem no Campus 2 da USCS foi muito produtivo. Fizemos um percurso pelas obras de Fernando Pessoa e José Saramago, sob o ponto de vista da invisibilidade social e linguística. Aí está nosso percurso de textos para quem desejar fazer ou refazer a “viagem”.
Abraço
Susana

“Mar português” – Mensagem – Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

“Ela canta, pobre ceifeira” – Fernando Pessoa


Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!


“Poema em Linha Recta” – Álvaro de Campos


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


“Poema XXXII” – O guardador de rebanhos – Alberto Caeiro


Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.

(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu – não sofrerão.

Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)

Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.

(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa – existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar nisso.

E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?

Memorial do Convento – Trecho – José Saramago

Vão outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos os Baltasares, e haverá Joões, Álvaros, Antónios e Joaquins, talvez Bartolomeus, mas nenhum o tal, e Pedros, e Vicentes, e Bentos, Bernardos e Caetanos, tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino; Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados, porventura nem todos estes nomes serão os próprios do tempo e do lugar, menos ainda da gente, mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos, e alguns destes estarão no futuro de alguns daqueles, à espera de quem vier a ter o nome e a profissão. De quantos pertencem ao alfabeto da amostra e vão a Pêro Pinheiro [...]

“Fala do Velho do Restelo ao Astronauta” – José Saramago


Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti nem eu sei que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal soletramos, de olhos tensos,
Maravilhas de espaço e de vertigem:
Salgados oceanos que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
(E as bombas de napalme são brinquedos),
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome.