domingo, 20 de junho de 2010

Encontro na UCSC em 18 de junho e texto de Saramago

O segundo encontro na UCSC no dia 18 foi marcado pelo desaparecimento de José Saramago.
Conforme prometi, então, reproduzo o discurso de Saramago que comentamos e que foi pronunciado no dia 10 de dezembro de 1998, no Banquete que fez parte das solenidades de recepção do Prêmio Nobel de Literatura.
Um abraço
Susana

"Majestades, Alteza Real, Senhoras e Senhores,


Cumpriram-se hoje exactamente cinquenta anos sobre a assinatura da Declaração Universal de Direitos Humanos. Não têm faltado, felizmente, comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, com que rapidez a aten-ção se fatiga quando as circunstâncias lhe impõem que se aplique ao exa-me de questões sérias, não é arriscado prever que o interesse público por esta comece a diminuir a partir de amanhã. Claro que nada tenho contra actos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desa-conselha, permita-se-me que pronuncie aqui umas quantas palavras mais.

Como declaração de princípios que é, a Declaração Universal de Direitos Humanos não cria obrigações legais aos Estados, salvo se as respectivas Constituições estabelecem que os direitos fundamentais e as liberdades nelas reconhecidos serão interpretados de acordo com a Declaração. Todos sabemos, porém, que esse reconhecimento formal pode acabar por ser desvirtuado ou mesmo denegado na acção política, na gestão econômica e na realidade social. A Declaração Universal é geralmente considerada pelos poderes econômicos e pelos poderes políticos, mesmo quando presumem de democráticos, como um documento cuja importância não vai muito além do grau de boa consciência que lhes proporcione.

Nestes cinquenta anos não parece que os Governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força da lei, estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigual-dades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esqui-zofrénica humanidade que é capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante.

Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os Governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem. Ou porque não lho permitam os que efectivamente governam, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a uma casca sem conteúdo o que ainda restava de ideal de democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Foi-nos proposta uma Declaração Universal de Direi-tos Humanos, e com isso julgámos ter tudo, sem repararmos que nenhuns direitos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspon-dem, o primeiro dos quais será exigir que esses direitos sejam não só reco-nhecidos, mas também respeitados e satisfeitos. Não é de esperar que os Governos façam nos próximos cinquenta anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicar-mos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deve-res. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor.

Não estão esquecidos os agradecimentos. Em Frankfurt, onde estava no dia 8 de Outubro, as primeiras palavras que disse foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prémio Nobel de Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos volto a agradecer. E agora quero também agradecer aos escritores portugueses e de língua portuguesa, aos do passado e aos e aos de agora : é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem hajam, portanto. "
(José Saramago, discurso no Banquete de recepção do Prêmio Nobel de 1998).

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